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Pistes pour une politique alternative Pistas para políticas alternativas
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Patrick Viveret é filósofo no Instituto de Estudos Políticos de Paris e um teórico particularmente inovador em temas como Riqueza, Moeda, Crédito, Globalização e Democracia. Publicou, entre diversas obras, Reconsiderar a Riqueza (Ed. UnB, 2006) em que disseca a parcialidade de cálculos como o do PIB e os interesses que há por trás deles. Participa ativamente, desde 2001, dos Fóruns Sociais Mundiais. Publicou, no Le Monde Diplomatique Brasil, o artigo “É hora de um novo humanismo”. Colabora atualmente com a revista francesa Territoires. Tradução: Antonio Martins – Outras Palavras.

 

Que lições tirar da queda de dois governos eleitos democraticamente, na Grécia e Itália, sob pressão dos mercados financeiros?

 

A democracia e a paz, os dois valores centrais sob os quais se constituiu a União Europeia, estão hoje ameaçadas. Entramos numa situação de emergência democrática, precisamente porque a lógica financeira não é mais capaz de conviver duas grandes características da democracia: por um lado, o tempo; por outro, a pluralidade e a diferença de opiniões.

 

Os mercados financeiros funcionam, agora, a cada segundo ou nano-segundo. Não suportam mais o tempo democrático, que para eles nunca é suficientemente rápido. Esta situação é criada e agravada pelo fato de 70% das transações financeira nos Estados Unidos (e metade, na Europa) serem realizadas por autômatos, através de algorítimos de negociação. Quando nos dizem que é preciso oferecer garantias aos mercados, é quase como se alertassem para “acalmarmos os robôs”. Daí o desenvolvimento desta novilíngua totalitária da economia financeira, que, por ser opaca, joga um papel estruturante na negação da democracia.

 

Há um trabalho formidável de desconstrução de discurso e de educação popular pela frente, para explicar à sociedade quem são estes famosos mercados financeiros que nos pedem para tranquilizar. O simples fato de perguntar “quem são” permite expor ao mesmo tempo o papel considerável dos autômatos e a psicose maníaco-depressiva em que os mercados estão envolvidos. O Wall Street Journal, que não é a encarnação de um pensamento alternativo, lembrava, na época do crash da bolsa de Nova York, em 1987, que os mercados só conhecem dois sentimentos: euforia e pânico. É exatamente o que caracteriza a psicose maníaco-depressiva. Ou seja, um estado em que as pessoas perdem o contato com o real, principalmente o econômico, e podem dilapidar dinheiro. É uma das razões pelas quais propomos tutela e curatela. Não se trata apenas de regular os mercados financeiros, mas também de cuidar deles, pois constituem hoje um problema de saúde internacional.

 

O outro fundamento da democracia que os mercados não aceitam é a pluralidade de orientações, inerente ao processo democrático. Eles exigem, em toda parte, regras imutáveis e governos de união nacional, dirigidos por técnicos. Isso já havia sido notado nos Estados Unidos, durante o desacordo entre republicanos e democratas sobre o déficit. A gestão dinâmica da divergência, que é um fundamento democrático, não é mais compatível com a lógica financeira.

 

Se deixarmos esta lógica se impor, chegaremos ao que descreveu Paul Krugman, Nobel de Economia. Para ele, os programas de austeridade equivalem aos sacrifícios humanos entre os maias. É preciso analisar a crise atual com base nas categorias de uma crise de fé – portanto, uma crise religiosa, não apenas de confiança. Estamos sob domínio de um feixe de crenças e credulidades segundo as quais não há, diante dos novos deuses coroados que são os mercados financeiros, outra atitude exceto os sacrifícios. E sacrifícios humanos! Cada anúncio de um plano de austeridade implica mais desemprego, menos leitos hospitalares, menos educação.

 

É uma destruição de riqueza real e humana tão absurda quanto os sacrifícios maias, incapazes de deter os eclipses do sol ou a derrocada daquela civilização. Sabemos que são ineficazes, mas nos afirmam que o motivo é o fato de não termos nos sacrificado o suficiente. Ora, se deixarmos que esta lógica sacrificial vá até as últimas consequências colocaremos em xeque não apenas a democracia, mas a própria paz.

 

Uma economia inteiramente autônoma em relação à política e à ética engendra certas formas de guerras civil. Vimos seu embrião nos enfrentamentos de rua britânicos de há alguns meses. Mas esta economia traz em si, também, os germes das guerras internacionais. Os elementos de revolta social já estão presentes – e estarão ainda mais com os programas de austeridade.

 

A melhor maneira de canalizar as revoltas é encontrar bodes expiatórios. Sejam internos, como os judeus de ontem, ou ciganos de hoje; sejam externos. As revoltas sociais que crescem na China, diante da classe dos novos ricos, podem fazer com que Taiwan se torne alvo de um grande conflito. E, para Israel, uma boa forma de desviar as potentes manifestações de seus indignados seria um conflito contra o Irã. As políticas econômicas atuais são já bombas-relógios planetárias.

 

 

Propostas e resumos

 

Mas a espiral de endividamento é uma preocupação legítima…

 

A ameça que pesa hoje na Europa, sobre os valores centrais da paz e da democracia, me parece muito mais importante que a dívida financeira. Inclusive porque ela pode ser compreendida como a sobreposição de três dívidas: a ecológica, a social e a financeira – esta, a menos importante.

 

A dívida ecológica, que se mede por meio da pegada ecológica, permite aos países ricos e a suas classes dominantes um modo de vida ambientalmente insustentável, já que três bilhões de seres humanos continuam vivendo abaixo da pegada ecológica. Mas quando os indianos ou chineses decidem mudar de patamar e se equiparar ao Ocidente, o cenário torna-se insustentável. A dívida mais urgente é, para os grandes emissores de gases do efeito-estufa, converter-se a modos de desenvolvimento ecológicos — e apoiar a reorientação dos países do Sul.

 

A dívida social também refere-se a uma nova transferência de riqueza, do trabalho para o capital, a partir dos anos 1980. Segundo cálculos de Pierre Larrouturou, foram 35 trilhões de dólares em trinta anos. Este processo não tem legitimidade democrática e a dívida financeira constitui-se, em grande medida, de seus resultados.

 

Mesmo que os números gerais sejam difíceis de manejar, testemunho que, quando integrei o Tribunal de Contas da França, calculamos o valor das isenções fiscais que beneficiaram os mais ricos. Eram 100 bilhões de euros, que constituem um duplo prejuízo para alguns e um lucro em dobro para outros.

 

Os beneficiários destas isenções pagam menos impostos e contribuições sociais. Com este ganho, podem emprestar, especialmente ao Estado, e receber juros. A maioria, especialmente os mais pobres, recebe menos serviços públicos e benefícios previdenciários. E mais tarde, são chamados a pagar pela austeridade, na condição de cidadãos contribuintes. Portanto, a dívida social, de que os mais pobres eram credores, converteu-se em dívida financeira, da qual os mais ricos são credores.

 

É preciso, claro, resolver a dívida financeira, mas em relação com a social e a ecológica. Pode-se começar a resgatar a dívida financeira, mas com base em critérios de justiça social. Um governo de esquerda eleito na França, em 2012, poderia lutar por uma lei que fixasse o teto máximo de renda e o patamar máximo de desigualdade aceitáveis, numa república cuja divisa é “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Por exemplo, uma proporção de 1 para 10. Ele teria como efeito a elevação dos benefícios previdenciários mas, também, a instituição de uma renda máxima. Se houver este teto, ele será rapidamente ultrapassado pelo reembolso da dívida, que beneficia os mais ricos. Será legítimo, portanto, que este excesso de renda seja retomado por meio de impostos. No caso da França, este processo atingiria dois terços da dívida – o restante está nas mãos de fundos estrangeiros. Já seria uma enorme transformação, porque esta primeira redução do valor a pagar reduziria também os juros, um montante colossal.

 

O excedente poderia ser direcionado a investimentos ecológicos e sociais, por meio de fundações públicas, e para a criação de uma moeda ecológica e social. Significa que é necessário também repensar a moeda, que está no centro das desfuncionalidades do sistema.

 

Um bom exemplo, lembrado por Bernard Lietaer, antigo dirigente do Banco Central da Bélgica, é o empreendimento de grandes projetos: por exemplo, a construção das catedrais. Ela só é possível se o valor do bem que se constrói a longo prazo parece mais interessante que o valor da moeda que se utiliza a curto prazo. A catedral de Chartes [uma das grandes obras góticas da França, iniciada em 1145 (Nota da Tradução)] beneficia-se ainda hoje de um investimento de longo prazo da coletividade, porque a detenção de moeda líquida não era tão importante e interessante no curto prazo como hoje. Se à época a cidade de Chartres tivesse a opção de investimentos financeiros que rendessem 15% ao ano, a obra jamais teria sido iniciada.

 

Ora, os investimentos sociais, e ligados ao desenvolvimento sustentável, são pesados, de longo prazo, sem rentabilidade imediata – exceto a de começar a evitar o pior… É necessário deixar a obsessão pelo curto prazo, criando condições para que o investimento puramente financeiro não renda juros – ou, melhor, seja desvalorizado por uma espécie de anti-juro. Isso pode ser feito transformando a natureza da moeda, ou instituindo um tributo sobre as transações financeiras relevante – algo como 2%, e não os 0,05% dos quais se fala hoje.

 

As assimetrias monetárias estão no centro da crise atual. Mas como criar uma moeda mundial livre de especulação, com base no modelo dos sistemas alternativos de trocas locais? A solução para a crise atual poderia vir da ampliação dos princípios da economia solidária?

 

Diante da crise das moedas internacionais – dólar e euro –, as moedas sociais oferecem uma perspectiva de transformação ambiciosa, de reapropriação democrática da moeda, para que valorize os circuitos cidadãos, ecológicos e sociais. Tais moedas propõem modos de troca alternativos, voltados ao desenvolvimento humano coletivo e não ao enriquecimento especulativo de poucos. Há exemplos que funcionam muito bem: em Toulouse, na França, o Sol Violeta, que tem apoio de instituições como o Macif [grupo francês de seguros cooperativo; com 4,7 milhões de associados, é o maior segurador de casas e automóveis no país (Nota da tradução)] e o Crédit Cooperatif [banco cooperativo francês, fundado em 1901]. São moedas anti-especulativas: quando não utilizadas, perdem o valor com o tempo, o que inibe a especulação e o entesouramento.

 

Bernard Lietaer demitiu-se do Banco Central da Bélgica ao constatar que a instituição – como as correlatas, em todo o mundo – aceleram a crise financeira, ao invés de controlá-la. Ele propôs uma moeda mundial, a Terra. Partia do princípio de que o dólar não poderá manter seu papel ambíguo – de dinheiro dos Estados Unidos e moeda mundial. Ela poderia ser construída como moeda a serviço de desenvolvimento sustentável, e também submetida a desvalorização, em caso de não-uso. Chegou a hora de os poderes públicos retomarem controle sobre a criação monetária, que perderam. É perfeitamente possível estender, em escala mundial, os experimentos locais, reincorporando numa perspectiva macro, diante da crise do euro e dólar, as iniciativas das finanças solidárias e das moedas sociais.

 

Esta proposta inscreve-se na ideia de uma economia plural, onde o mercado tem seu lugar – mas nada mais que seu lugar. Ele convive com a economia pública e a economia solidária. Teremos, portanto, uma economia com mercado, não mais de mercado. É, aliás, uma alternativa também a uma economia apenas pública, que tende a se tornar burocrática e administrada.

 

Que formas de governança esta transformação poderia permitir?

 

A emergência de um movimento mundial pelos direitos cívicos, com a primavera árabe, os indignados espanhóis e o Occupy, nos Estados Unidos, retomam as ideias do altermundismo. Estabelecem base para um cidadania planetária e, mais tarde, de uma governança democrática mundial. Na verdade, governança mundial já existe – mas oligárquica, técnica, às vezes despótica. E está se mostrando totalmente ineficaz…

 

É natural: não se pode tomar decisões que comprometem bilhões de cidadãos se são definidas em gabinetes isolados do resto do planeta – em especial se requerem sacrifícios e esforços repetidos e crescentes. As sociedades podem aceitar sacrifícios e envolver-se em esforços, mas na condição de que visem enfrentar grandes desafios, como a sustentabilidade ecológica. Esta cidadania mundial não pode permanecer na condição de velha utopia. Precisa tornar-se um objetivo fundamental.

 

Porém, uma governança mundial não é uma super-burocracia planetária. Deveria aplicar o princípio de subsidiariedade. Trataríamos na esfera planetária apenas o que tem a ver com o planeta como um todo: por exemplo, o aquecimento global ou as armas de destruição em massa. A grande questão do século 21 é: descambaremos para um ordem cada vez mais oligárquica, que não suporta a democracia e se torna fonte de caos? Ou nos daremos os meios para transformar os desafios em oportunidades? A humanidade deu a si própria um destino comum. O positivo de todos os riscos que nos ameaçam, de todas as crises sistêmicas, é que a humanidade pode tornar-se sujeito de sua própria história. Ela começou, com Hiroshima, a compreender que também é sujeito negativo de sua história. No momento de Fukushima, poderia, ao contrário, tornar-se sujeito positivo.

 

Quando se fala de governo, surge sempre o tema da defesa, que faz parte da soberania. Mas que seria um ministro de Defesa da humanidade? O papel dos ministérios da Defesa é analisar as ameaças e responder a elas. A humanidade enfrenta ameças? A resposta é sim. Mas elas não vêm do exterior. A barbárie é interior. Um ministro de Defesa da humanidade diria que a destruição dos ecossistemas ameaça o planeta e requer uma política industrial radicalmente transformada. Que o coquetel explosivo das misérias produzidas pelo aumento vertiginoso da desigualdade impõe outra política social. Que a circulação anárquica de armas de destruição em massa exige uma política de desarmamento…

 

Combater a barbárie no interior das coletividades humanas, e no interior de cada um de nós, não levaria a menosprezar as instituições que permitiram aos seres humanos reunir-se e definir as condições de uma vida em comum?

 

A questão institucional é considerável, mas é diferente ter instituições que favorecem a paz ou a guerra, a democracia ou a oligarquia. É o que dizia [o filósofo Cornélio] Castoriadis sobre a dinâmica do instituinte e do instituído. É preciso lembrar que a instituição é um grande espaço, mas que as instituições devem ser revivificadas e questionadas a todo instante, pela força da energia instituinte. As novas formas políticas ou econômicas que devemos promover para “fazer sociedade” são importantes, não para criar ilhotas de marginalidade em torno do sistema, mas para construir instituições nacionais, continentais e mundiais.

 

Até o início dos anos 1980, a Europa, em seu processo institucional, esteve neste rumo. Representava um caso muito interessante, inclusive por seu modo de regulação e por seu modelo de economia de mercado regulada, que não era capitalista. Os liberais e os marxistas confundem capitalismo com mercado. O capitalismo inscreve-se numa lógica de potência, e se deixarmos que se desenvolva sem limites, destrói também as trocas e os mercados, como sublinhou o historiador Fernand Braudel.

 

O capitalismo age numa lógica de monopólios – industriais no passado, informacionais hoje. Mas o verdadeiro mercado é uma instituição que supõe regulação. Precisa, por exemplo, da paz e do direito. A primeira parte da história das instituições europeias nutria-se na experiência dos fatos totalitários, da guerra e das desregulações nocivas da primeira “sociedade de mercado”, descrita por Karl Polanyi.

 

A partir do momento em que derivamos, cada vez mais rápido, para uma Europa que ajuda a impor a globalização financeira, o continente começou a se desestruturar a partir de dentro. Em vez de ser protetor, tornou-se ameaçante. Chegamos hoje a um ponto crítico, em que esta Europa tornou-se incapaz de defender seus próprios avanços. Se permanecermos nesta mecânica, corremos o risco de viver não apenas o fim do euro, mas uma explosão da própria Europa.

 

É preciso retomar o caminho europeu a partir da base inicial, dos primeiros trinta anos pós-II Guerra, incorporando a questão ecológica, que era a grande ausente. Mas a Europa não poderá evitar sua própria destruição, que está em curso, sem lidar com as questões ecológica, social e democrática. Além de perfeitamente possível, tudo isso corresponde à aspiração dos povos europeus, que não querem mais nacionalismo e soberanismo, mas recusam que a lógica europeia seja a fachada de um retrocesso social e democrático.

 

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