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Buen Vivir Resgatar e valorizar outros pilares éticos: o Bom Viver

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Entramos na crítica encruzilhada histórica atual com uma alentadora constatação de resistência e proposta dos povos. As culturas ancestrais dos diversos povos da Ásia, Oceania, África e América Latina têm apresentado um permanente desafio prático e teórico às concepções do suposto desenvolvimento histórico, linear e crescente da humanidade, próprias da modernidade primeiramente eurocêntrica e depois norte-americana, que as tinham condenado à inexorável superação ou extinção, como vestígio caduco do arcaico e sobrevivência do atraso.

 

Neste paradoxo do supostamente arcaico e atrasado na teoria, mas que aparece empiricamente, demostrando novidade e vigência, projeta-se parte da necessidade atual da humanidade por desenhar novas formas de conhecimento e entendimento que questionem, permitam desconstruir e superem os pilares hoje em crise da civilização hegemônica.

É essa mesma crise múltipla, integral, a que gera condições materiais objetivas que permitem olhar como vigentes e ameaçadores os saberes alternativos de outras culturas que emergiram de maneira paralela, separada e diferente, que chegaram a ser altamente desenvolvidas.

 

Ainda que nelas tenham existido relações de dominação e conflito, estas eram de um caráter muito diferente às da Europa ocidental e dos Estados Unidos, e ocupavam um lugar secundário sob a hegemonia de princípios de regulação social que reuniam a justiça social e ambiental como suporte da harmonia e equilíbrio do mundo e do cosmos.

Superando dificuldades epistemológicas diversas e complexas, o conhecimento destas realidades é crescente e já não é fácil subestimá-lo. A humanidade toma consciência, por exemplo, do fato objetivo e crucial de que as maiores reservas de biodiversidade do planeta foram conservadas por vários destes povos supostamente “bárbaros” e “incivilizados”, apesar e na contramão do “civilizado” o progresso científico do ocidente moderno, que quase com segurança teria exterminado essas reservas de vida, se tivesse podido fazer uso delas.

 

Além disso, enquanto os povos originários conseguiam com sua resistência conservar este tesouro de esperança vital para toda a humanidade, ao mesmo tempo o ocidente moderno civilizado criava os horrores atômicos, químicos e bacteriológicos que poderiam exterminar a vida humana por completo, ou ao menos danificá-la irreparavelmente.

Criar condições para facilitar este movimento de descolonização epistemológica e ética para recuperar de maneira útil os acervos culturais dos povos do mundo constitui uma tarefa teórica de primeira ordem política, que já está em marcha, mas insuficiente ainda, à que devem ser destinados esforços, conscientes de que estes novos ou renovados enfoques éticos necessariamente devem ser incorporados no processo de trânsito e superação civilizatória.

 

Kachkaniraqmi: “Aqui estamos, todavia somos”

No caso específico da cultura andina na América Latina, não se trata só da existência na atualidade de mais de 1.600 comunidades andinas, unicamente nos atuais Equador, Peru e Bolívia, que vivem em autonomia produtiva e cultural; nem sequer da presença relevante, apesar do sistemático genocídio, dos povos indígenas sul-americanos, que atualmente constituem 60% da população da Bolívia, 35% do Equador, com ao menos 400 povos diferentes e distinguíveis em todos os atuais países do continente; senão de um processo bem mais duradouro, profundo e crescente, que envolve o conjunto das sociedades.

Na contramão de dois séculos de “racionalização”, “modernização”, “urbanização” e outros processos similares, sancionados exaustivamente pela academia, sociologia e economia, o “Bom viver”, Sumac Kawsay em quéchua, e Soma Qamaña, em aymará, profundo princípio ético da cultura ancestral andina, é levado ao debate das Nações Unidas por pelo menos três presidentes sul-americanos no início do século XXI, e num fato inédito na história, a nova Constituição Política do Estado Plurinacional de Bolívia (2008) eleva-o, junto a outros princípios ancestrais andinos, à esfera constitucional (artigo 8.I).

 

Não é um fenômeno contingente, mas recorrente, cíclico, permanente, ao longo de toda a história dos países andinos. Esta persistência da cultura ancestral andina vem apresentando um paradoxo: o supostamente “caduco”, “arcaico”, “primitivo”, “atrasado” e “retrógrado”, é de fato gerador do novo, de renovação, e inclusive do revolucionário. Em contraposição, no entanto, a esta prática realmente existente das sociedades e dos povos, as cadeias globais de meios de comunicação em massa, digitadas pelos poderes mundiais hegemônicos, violentos e dominantes, transmitem análises destas realidades marcadas por um profundo colonialismo e racismo, em que estas são qualificadas de “atraso político”, “populismo”, “fundamentalismo indígena”, etc. Para além das intencionalidades de dominação por trás destes meios, estas incomprensões permitem evidenciar até que ponto ainda a humanidade está insuficientemente capacitada conceitualmente para se entender e relacionar-se em sua diversidade.

 

No entanto, é precisamente seu caráter radicalmente diferente e ainda oposto à cultura hegemônica, por parte da cultura andina em geral e o “Bom viver” em particular, que permite e explica sua possibilidade de contribuir literalmente “de outro lugar”, de outra lógica e paradigma, à superação da atual crise do paradigma civilizatório hegemônico.

 

Superar as visões extremas e fáceis

Reconstruir a cultura andina e especificar o Bom viver é uma tarefa difícil, complexa, sem conclusões definitivas em todos os seus detalhes, mas necessariamente realizável, ao menos em alguns de seus elementos fundamentais, vitais para o entendimento das dificuldades e das implicações do presente. Impõe-se sortear as dificuldades do preconceito que pretende olhar teoricamente a cultura andina como “repetição do mesmo”, caso particular de supostas leis universais de toda a humanidade. Ou o do extremo contrário que tenta apresentá-la como uma espécie de “paraíso” perfeito, sem relações de dominação e conflito. Evade-se, deste modo, do arduo trabalho de reconstruir e reconhecer com rigor uma realidade que não é nem uma nem a outra, senão diferente, com relações de dominação e conflito, mas que são inéditas e originais e não redutíveis às supostamente universais.

 

Reagindo ante a violenta negação e desqualificação histórica, há quem chegue à idealização acrítica do passado, neste caso da cultura andina, alheia e contrária ao esforço de reconstrução autêntica, rigorosa e útil; servindo às vezes de base a uma visão indigenista totalitária, de base filo racista, e que pretende inclusive uma posição de privilégio, excludente e sectária, numa nova estrutura hierárquica de relacionamiento com os demais povos e atores sociais.

 

Já ao longo do século XX, tinha-se gerado um equivocado debate sobre a existência ou não de um suposto “socialismo incaico”. Um debate mais artificial que real, mantido por políticos mais que por pesquisadores das ciências sociais, políticos todos sob a óptica do colonialismo. Um debate, poderíamos dizer, entre colonizados. Os que querem ver a repetição da monarquia européia e os que querem ver um socialismo que como “modelo” foi produto também europeu. Ambos cegos ao inédito e original, o realmente existente. Ironicamente, a mesma concepção do “socialismo incaico” foi originada por um reacionário conservador de direita, o advogado francês Louis Baudin, quem a partir de alguns elementos históricos coincidentes com o discurso socialista europeu, identificou à ordem social administrada pelos incas com o “socialismo”, como do mesmo modo faziam muitos com o “império e a monarquia” européias. Esta identificação de uma realidade complexa e única com um modelo histórico europeu, a partir de apenas alguns elementos meramente exteriores e formais coincidentes é o típico mecanismo do colonialismo epistêmico. Paradoxalmente, Boudin ao escrever e publicar em francês seu famoso livro “O império socialista dos incas” em 1928, buscava identificar o socialismo europeu moderno com o suposto “socialismo escravista” dos incas e assim desprestigiar a ambos “socialismos” como intrinsicamente opressivos e criminosos. No entanto, a popularidade do título da obra, tão superficialmente escrita como mal-interpretada, lançou as bases do debate, mais ideológico que sério e sistemático, entre as interpretações “satanizadoras” ou “idealizadoras”, ambas coloniais, do Tahuantinsuyo.

 

Devem-se redobrar esforços para facilitar esta tarefa histórica, a de descolonizar o saber, desaprender o colonialismo, dar seu lugar aos nossos povos originários como um “Outro”, diferente, criador de conhecimento legítimo e útil, em imprescindível diálogo horizontal com o conhecimento ocidental moderno. Encontrar outras formas de entender o “outro”, que permitam sua descrição e análise no que de fato era e é, para além de armadilhas políticas universalistas e negadoras, por um lado, ou idealistas e justificadoras, por outro. Uma exigência de descolonização epistemológica que supere a polaridade maniqueísta da satanização ou do fetichismo das culturas ancestrais e diferentes, neste caso a andina, construindo uma aproximação de conhecimento mais real e útil, ainda que mais complexa e difícil, no amplo e desigual terreno que se estende entre aquelas visões extremas e fáceis.

 

A origem da originalidade

Se o “Bom viver” é um enfoque ético, no sentido essencial do termo, é importante advertir primeiramente que não se trata, nem muito menos, de um plenamente acabado ou indiscutido, pelo contrário, se nos aparece em construção plural, complexa e polêmica. Daí que para compreendê-lo de maneira útil é necessário conhecer previamente os contextos profundos e essenciais da cultura andina ancestral, dos quais o Bom viver é fruto e expressão.

 

“Andino” vem de “Andes”, que é o nome que recebe o sistema montanhoso de milhões de anos de formação, que atravessa o continente sul-americano, desde a Venezuela e Colômbia no norte até a Antártida no sul. “Andes” tem sua origem do antigo aymará “Qhatir Qullo Qullo”: “Montanha que se ilumina” (pela saída e por do sol); e que os espanhóis reduziram unicamente a “Qhatir”, o qual castelhanizaram como “Antis” e finalmente “Andes”. Trata-se de uma cadeia interminável de cumes, a mais longa do mundo com 7.500 quilômetros de extensão, com uma média de 4.000 metros de altura acima do nível do mar, superando em muitos pontos os 6.000 metros. Apresenta-se como coluna vertebral simbólica do continente, onipresente, diversa e comum, de norte a sul, de oceano a oceano, ligando de uma ou outra forma todos os atuais países, fundindo os atuais Peru e Bolívia com o Amazonas numa forte identidade andino-amazônica. Privilegiado observatório natural astrológico e palco de permanentes e cíclicas movimentações telúricas, com inevitáveis conseqüências mítico-espirituais e religiosas nos povos que milenarmente os habitam. Em torno dos Andes surgiram as primeiras e surpreendentes ordens sociais e estatais, abarcando amplos territórios de vários países atuais sul-americanos.

 

Não existem provas sérias da chegada à América de seres humanos depois de que se fechasse o chamado “Estreito de Behring” que uniu por congelamento a América do Norte e a Europa há onze mil anos, nem existem provas contundentes que permitam concluir que os povos americanos tiveram contatos com povos de outros continentes até a chegada dos europeus no século XV, salvo exceções de qualquer modo fugazes como a da exploração viking na América do Norte no século X e as evidências de exploração chinesa na América Latina seis décadas antes da chegada dos europeus. O isolamento da América e de suas populações de todo contato significativo com as populações de outros continentes do planeta, a partir de cerca de onze mil anos atrás, determinou que os seres humanos desenvolvessem uma interação única e irrepetível com os meios astrológicos, geográficos, climatológicos e zoológicos específicos desta região; uma evolução sócio-cultural diferente, paralela e independente, das desenvolvidas em outras partes do planeta, que materialmente gerou consequentemente ordens sociais e estruturas culturais igualmente únicas e irrepetíveis. Esta é a base da originalidade, do caráter inédito, da denominada pré-história americana, de modo que para seu estudo não se emprega a periodização tradicional da pré-história nem a metodologia usadas em outras partes do mundo, senão umas específicas e adequadas à realidade arqueológica do continente.

 

Exatamente do mesmo modo, as primeiras civilizações da América desenvolveram-se de maneira isolada, paralela mas independente, do resto do planeta durante milhares de anos. Esta é a razão concreta, material, estrutural, histórica, pela qual as realidades americanas, e especificamente a cultura andina, não podem ser compreendidas realmente se estudadas e interpretadas com as ideias e métodos nascidos em e para outras realidades.

 

A periodização especificamente adequada e mais consensuada para seu estudo e entendimento é a de três grandes horizontes pan-andinos, isto é, ordens sociais estatais que abarcaram territórios de vários dos países atuais da América do Sul: Cedo (Chavín), Intermediário (Tiawanaku) e Tardio (Tahuantinsuyo). Mas que não são correlatos e consecutivos, senão que estão interrompidos por períodos intercalados de predomínio da fragmentação em numerosas ordens sociais de caráter regional e local, limitadas a pequenas porções de território. Chamam-se-lhes dois grandes “intermédios” localistas. Em coerência com os princípios básicos de flexibilidade e adaptação que inspiram a todas as culturas e comunidades andinas, estes horizontes e intermédios, obedeciam a períodos de aumento do gelo nos picos andinos que deslocavam grandes populações e impunham, como mecanismo de adequação, a formação complexa e contraditória de ordens sociais que, sendo estatais, hierárquicas e com relações de dominação e conflito, conservavam no entanto os princípios fundamentais da reciprocidade e redistribuição social comunitária em grande escala, e o equilíbrio harmônico com o meio ambiente.

 

Subjacentemente a estes ciclos históricos, alternativamente pan-andinos e localistas, existe uma continuidade cultural permanente que foi sustentada e acumulada por milhares de anos, sob diversas formas políticas, por centenas de diversos povos andinos. Esta continuidade e acumulado subjacente permitiu desenvolver um alto grau de conhecimento agro-astrológico, matemático geométrico, arquitetônico, hidráulico, simbólico-comunicacional e cultural. A forma específica do Tahuantinsuyo, último ciclo pan-andino sob administração dos incas, é só uma pequena e última parte dessa continuidade e acumulado milenar, e foi o que conheceram os invasores europeus.

 

Os princípios essenciais

Um grande movimento de investigação e recuperação contra-colonial destas culturas e desta história, tanto a partir dos próprios povos andinos, como da academia e da política, desde ao menos o início do século XX, vem permitindo contar com visões rigorosas e úteis estas realidades e saberes. A partir delas, entregamos uma muito essencial descrição de seus conteúdos mais substanciais, que permitem contextualizar e compreender boa parte do atual enfoque civilizatório do Bom viver, insistindo advertir sobre o esforço adicional e complexo imposto para poder olhar e compreender de outro paradigma muitas de suas concepções, estranhas ou inconcebíveis a partir do paradigma hegemônico.

 

O mundo andino é um mundo vivo, um mundo ser. Um mundo onde sempre e tudo é presente, tudo é natural e imanente. Não há separação entre o abstrato e o real, isto é, o símbolo e os nomes são tão reais e materiais como qualquer outro ser. O tempo passado e futuro existem só no presente, para o presente e pelo presente, são atualidade. É um tempo cíclico, não circular, não repetitivo, senão renovado, sempre com variações cósmicas e telúricas. As pessoas no Tahuantinsuyo, segundo os primeiros cronistas espanhóis, desconheciam sua idade, nos termos ocidentais de magnitude de anos. Diferentemente, classificavam-se por ciclos de idade em relação à capacidade produtiva, desde os bebês: uaua / llullac uarmi uaua, até os idosos: rocto macho / punoc paya. No Runa Simi, idioma “geral” comum – não oficial nem excludente – do Tahuantinsuyo, derivado do Kichwa, todas as categorias de ciclo de vida estavam distinguidas em feminino e masculino, distinção simbólica na linguagem que é atualmente bandeira da luta pela igualdade de gênero no mundo ocidental, especialmente no idioma espanhol.

 

Seu centro fundamental ordenador era a dinâmica agro-astrológica, isto é, mantinham uma profunda observação e harmonia com os ciclos astrológicos em direta relação com os ciclos agrários. Tratava-se de um saber e um fazer sistemático, acumulado em milhares de anos, que tinha por finalidade manter e acrescentar o fluxo da vida, o equilíbrio, a reciprocidade e o diálogo entre todos os seres. Assim o testemunham inumeráveis e magníficos rituais complexos e tecnológicos, destinados justamente ao imprescindível saber agro-astrológico, em centenas de lugares da América do Sul, onde fica manifesto o preciso e profundo saber astrológico-agrário que se fundia, em sacralizada harmonia, com o fluxo e reprodução da vida.

 

A partir desse conhecimento acabado, conceberam um mundo vivo, vivificante e em permanente fluxo, com ciclos que sendo permanentes não necessariamente eram iguais, onde há lugar para o inesperado, o insólito e o contraditório, que se toma com naturalidade e familiaridade, se “digere”, se incorpora à lógica e dinâmica das coisas. Assim ocorreu, por exemplo, com a religião católica, cujas figuras centrais: Cristo, a virgem Maria e os santos, foram “digeridos” no mundo vivo andino como pessoas na comunidade de huacas -seres espirituais-, e como tais fazem parte das cerimônias, festas, conversas e reciprocidades, junto às huacas ancestrais, apus -espíritos das montanhas-, da batata, etc.

 

Diferentemente do pensamento ocidental moderno, não se trata de um mundo, uma natureza e um meio ambiente “objeto” com o qual o sujeito humano se relaciona, senão de um mundo que é em si mesmo sujeito, mais claramente, ser vivo, pessoa, e onde tudo o que o integra é por sua vez sujeito, ser vivo e pessoa, inclusive os solos, as águas, as pedras, os montes, as neblinas, as chuvas, os astros, os antepassados, as huacas -seres espirituais-, e por suposto os seres humanos, os animais e as plantas. Assim o mostra o denominado “Obelisco Tello”, uma huanca -pedra simbólica- achada no norte do Peru e correspondente à cultura pan-andina Chavín, de 4.000 anos; nela todos os seres: humanos, animais, plantas, montanhas, águas, astros, etc., têm olhos, ouvidos e boca; são seres vivos que trocam e conversam. Isto impõe uma consequência que separa radicalmente o pensamento andino do pensamento ocidental moderno: a cultura, entendida por definição como toda produção simbólica ou material do ser humano, é aqui uma dimensão do todo no mundo. Uma pedra tem cultura, um rio, uma lhama da mesma forma que o ser humano.

 

Contrariamente ao ocidente moderno, não existe estandardização, nenhuma terra, nem planta, nem pedra, nem rio, nem chuva, nem vento é igual a outro, cada lhama ou alpaca, cada planta, é uma pessoa diferente das demais, em relação e diálogo profundo, integral. Não existe tampouco nada fora do evidente, não é concebível nada “sobrenatural”, as huacas -espíritos presentes- são parte do mundo real e vivo como todo o demais. As sociedades andinas eram uma totalidade indissolúvel, integrada, das dimensões sociais, políticas, econômicas e espirituais. Os seres vivos do mundo andino podem ser distinguidos em três tipos de comunidades: as humanas -complexa diversidade de centenas de etnias, ordens comunais, locais e estatais-, as da Sallqa ou natureza -Pachamama-, e a das huacas ou presenças espirituais -antepassados, apus ou espíritos da montanha, dos astros, etc.

 

O espaço local, étnico-regional, imediato em que se relacionavam cotidianamente as três comunidades era o Ayllu, fonte fundamental da vida e da harmonia, que se manteve primordial, por debaixo e para além das ordens estatais pan-andinas, suas violências e dominações, e que até hoje conseguiu resistir e “digerir” as encomiendas e reduções espanholas, as fazendas, cooperativas e empresas multinacionais das repúblicas, mostrando uma vitalidade imbatível, com mais de 1.600 comunidades andinas na América do Sul.

 

A relação essencial que mantém unido o mundo é a incompletude, equivalência e reciprocidade de todos os seres. Em radical diferença com o pensamento ocidental moderno, ainda que existam relações de dominação e conflito entre os seres humanos – certamente limitadas por princípios invioláveis de “direitos sociais” –, o ser humano como comunidade de conjunto não tem nenhum estatuto de superioridade sobre os demais seres do mundo andino. É tão incompleto e tão equivalente como todos os demais, pelo que lhe resulta imprescindível se relacionar, em igualdade de condições, com todos os demais. Todos os demais precisam do mesmo modo do ser humano. Não cabem, não são concebíveis no mundo andino as relações de dominação e exclusão, ou de superioridade de algum ser sobre os demais, nem de parte dos seres humanos, nem de nenhum “deus” -ao estilo do Gêneses bíblico judaico-cristão ocidental. As três comunidades precisam-se, trocam e conversam entre si. A comunidade humana, por exemplo, observa, respeita a harmonia, pergunta à montanha se é possível fazer em sua encosta um canal de irrigação ou uma terraça para plantação. A comunidade de huacas, não só beneficia à humana brindando os ciclos agrários, como também precisa dela; por isso, os seres humanos, por exemplo, ajudam ao sol com o rito de lhe dar chicha quando este “está mais débil” ao finalizar o inverno, existindo inclusive “hortas semeadas de milho para o astro”. Reciprocamente, dão agradecimento à Pachamama a cada vez que bebem um líquido, jogando um pouco ao solo -chaya. Ritos que a perspectiva ocidental moderna mal-interpreta como “adoração” ao sol e à terra, mas que são formas de reciprocidade e diálogo entre a comunidade humana e a das huacas.

 

A materialidade da vida

Desmentindo de maneira prática e histórica o preconceito que caricaturiza a preocupação pelo meio ambiente como a postura de não intervir nem usar tecnologia para obter produtos da natureza, as culturas e comunidades andinas fizeram um uso em massa, intensivo, extensivo, e altamente tecnológico do meio ambiente, em plena harmonia e equilíbrio com o mesmo. Conseguindo maior produção alimentícia do que se obtém na mesma zona na atualidade, através de centenas de milhares de quilômetros de plataformas e terraças agrícolas, sistemas hidráulicos, diques, canais subterrâneos e lagoas artificiais, construídos em escarpadas encostas da cordilheira e altas planicies.

 

Guardavam a imensa produtividade em milhares de “Colca”, depósitos, para cuja conservação souberam aproveitar fatores climáticos, os ventos, a areia e a altura para manter frescos e sem insetos os alimentos, vestimentas, vimes, etc. Agregaram o uso intensivo da navegação e da pesca, existindo depoimentos de que chegaram a contar com “cem mil balsas no mar” (cronista Pedro Pizarro. Em: María Rostworowski.1988). A pecuária de camélidos andinos atingia enormes proporções e elevava o nível de vida geral, com a lã, o couro e a carne de lhama, usada também para o transporte, e seu excremento seco como combustível, e as finas lãs de alpaca e vicunha, que eram caçadas, tosqueadas e libertadas em seu hábitat natural para não diminuir seu número. Existiram intensas trocas por equivalências estabelecidas, já que não existiam nem a moeda nem o mercado no sentido em que hoje os conhecemos, ainda que com a especialização de muitos ofícios, tais como pescadores, pecuaristas, auferes, ceramistas, tecelões, servidores do culto às huacas, astrólogos, administradores, contadores e muitos outros, inclusive os chamados “mercadores”, espécie de revendedores, agentes de intercâmbios de produtos. Sua arquitetura, monumental e estendida, sobre a base da especialização de milhares de anos e o trabalho em massa por “mitas” turnos, foi paisagista e localizaram as estruturas em harmonia e identificação com o meio ambiente, como em Machu Pichu e centenas de outros impressionantes sítios por toda América do Sul.

 

Combinaram diversas formas de propriedade, sendo a predominante o ayllu, a propriedade comunitária étnica regional, que possuía terras, águas e pastos, muitas vezes distribuídas em diversos andares ecológicos, distantes até a um dia de caminho vertical nos Andes, para que assim todo ayllu pudesse contar com a maior variedade de produtos agropecuários. Seguindo as alturas andinas, desde a costa às serras e selvas, variavam drasticamente os microclimas e condições geográfico-agrícolas ou pastoris, e os povos andinos souberam aproveitar ao máximo, e com flexibilidade para a adaptação, todos eles. Existindo uma transumância limitada, estabelecimentos de colônias e enclaves, e a combinação de “povos fixos” e “estacionais” ou “por turnos”, entre eles. Enquanto a “redistribuição” era um mecanismo de partilha vertical, a “reciprocidade” era horizontal, ambas encontravam inumeráveis, diversas e complexas formas ao longo de todos os Andes, como a forma essencial de relacionamiento social, ainda acima e em interação com as relações de conflito e dominação.

 

Em cada ayllu todo homem comum possuía um “tupu” de terra e a cada novo filho lhe era aumentada seu parcela. O “tupu” como medida de superfície era de extensão relativa, variava com o tempo e esforço necessários para percorrê-lo, por exemplo, se era um tupu de subida era maior que se era plano; e com a qualidade do solo, por exemplo, era maior se a terra precisava de mais descanso, etc. Tratava-se de uma unidade de medida centrada na equivalência e harmonia, sempre suficiente para a alimentação e a boa vida. Isto lhes permitiu desenvolver excedentes que por um complexo sistema de reciprocidade e redistribuição fazia com que a miseria fosse desconhecida entre aquelas culturas, e era obrigação irrenunciável dos setores dirigentes garantir direitos sociais mínimos a todos. Os espanhóis assombraram-se em seus primeiros contatos pelo estado geral de boa saúde, nutrição e vestimenta da população. Inclusive as pessoas que por qualquer motivo não eram nem seriam já materialmente produtivas: idosos, pessoas com alguma incapacidade, doentes, etc., podiam desenvolver atividades adaptadas a sua circunstância: transmitir a experiência, cuidar do gado, enovelar a lã, etc. sendo em qualquer caso responsabilidade da comunidade, de maneira que atendia-se-lhes para que nada lhes faltasse. Depoimentos dos primeiros cronistas espanhóis mostram o nível de bem-estar atingido. Em Chucuito, atual Peru, por exemplo, um homem comum podia possuir mil cabeças de camélidos (Relatório da visita de Garci Diez de San Miguel em 1567 à província de Chuchito); hoje é uma das zonas mais pobres do país.

 

O Qhapac Ñan

De extraordinária força simbólica e social, ao mesmo tempo em que de permanência e atualidade, resulta o Qhapaq Ñan, a rede de túneis, caminhos, pontes, escalas, terraças, tambos -espécie de pousadas ou hospedagens-, e Colca – depósitos – do Tahuantinsuyo. Era o acumulado de 20.000 anos de trabalhos dos diversos povos andinos. Sendo responsabilidade de cada comunidade étnico-regional sua construção e manutenção, durante os períodos de predomínio dessa forma de governo; e do Estado, através do desenho e execução de grandes obras por “mitas” – turnos de trabalho, quando predominavam as federações pan-andinas.

 

“Qhapac Ñan” traduz-se normalmente como “Caminho do Inca”, porque eram os Incas quem o administravam quando chegaram os conquistadores europeus. No entanto, mais exatamente, significa “Caminho dos Qhapac” ou dos “Qhapackuna”, construtores e caminhantes desta rota. “K`apakk” significa “cabal, exato, justo”. Enquanto “Kkh`apakk” significa “Sagrado”. Trata-se então do “Camino dos justos” ou “Rota da sabedoria”. Sob a última administração inca, chegou a ter cerca de 6.000 quilômetros de extensão desde a Colômbia até o Maule no Chile, e 30.000 quilômetros quadrados totais de superfície conectada, incluindo diversos andares ecológicos, em costa, serra e selva, até 5.000 metros de altura.

 

No Qhapaq Ñan, ainda que tenha chegado a contar com um idioma geral comum, o “Runa simi”, derivado do Kichwa como síntese de vários idiomas, conservaram-se todos os diversos idiomas e culturas de centenas de povos diferentes. E é que no Tahuantinsuyo, à diferença de uma dinâmica paralela européia, a tendência predominante era que as culturas dos povos subordinados, ainda depois de serem derrotados em conflitos violentos, eram conservadas e passavam a fazer parte intactas da ordem estatal pan-andina.

 

Expressão do sentido das proporções e da harmonia da sociedade andina, no Tahuantinsuyo, o Qhapac Ñan incluía cada verdadeiro trecho, que podia ser de medida variável -”Tupu”-, segundo a dificuldade em avançar por ele, um “Thampu” ou “Tambo”. Tratavam-se de lugares onde tinha “tudo para a vida”, dispostos a certa distância, variável segundo o esforço necessário a percorrer, para que todo viajante pudesse descansar, beber, comer e exercer a reciprocidade espiritual com as huacas. Por isso, os espanhóis construíram muitas vezes sobre esses lugares suas igrejas, com o fim de avariar violentamente a anterior espiritualidade e impor a nova religião católica.

 

Como ocorre em geral com as culturas ancestrais, a riqueza material e cultural do Qhapac Ñan ainda está desentranhando-se, superando séculos de esquecimento e menosprezo colonialista. Muitos dos significados espirituais de seu desenho, por exemplo, estão sendo explorados muito seriamente pelos pesquisadores especializados. É o caso do “alinhamento matemático geodésico” de suas rotas, construções, observatórios estelares e cidades, em ângulos e linhas retas diagonais, em exata proporção de distâncias e referência ao eixo de inclinação do planeta, de profundas implicações ao mesmo tempo científicas e espirituais. Uma mostra deste processo é a nova Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia do ano 2008, em que “o estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: qhapaj ñan (caminho ou vida nobre)” (art. 8.1).

 

Na atualidade, os Estados do Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Argentina e Chile, a quem une o Qhapac Ñan, impulsionam sua declaração como patrimônio cultural da humanidade para o ano de 2011. Para isso, existe o “Projeto Qhapaq Ñan”, que registrou até o ano de 2004, 65 bacias hidrográficas, 735 sítios arqueológicos e identificou 16.000 comunidades. Representa assim o depoimento material e simbólico de que a integração da América do Sul é objetivamente necessária e perfeitamente possível, como complementariedade na riqueza da diferença e diversidade, e em plena harmonia com o meio ambiente.

 

O Bom viver

Em poucas palavras, o mundo andino pode ser resumido como um onde existiam relações de dominação e conflito, mas onde ainda estas estavam rigorosamente subordinadas a princípios de harmonia e equilíbrio superiores -Allin Kawsay- arraigados profundamente. Neles, o ser humano via a si mesmo como uma parte, nada mais, equivalente e em relação de reciprocidade a outras partes da totalidade universal cósmica, uma ruptura fundamental com o antropocentrismo hoje hegemônico e em crise. Suas estruturas e relações de poder, dominação e conflito, estavam imanentemente limitadas por um mínimo comum ético indiscutível e inviolável, que fazia de fato que a miséria e a agressão à natureza fossem literalmente inconcebíveis, e foram artigo de importação europeu que causaram tanto estupor e incompreensão a seus habitantes originais como as inéditas armas de fogo e as pestes mortais do invasor.

 

Esta auto-limitação, profundamente estabelecida como verdade imprescindível, como ética ao mesmo tempo social e cósmica, é oposta à concepção do desenvolvimento entendido como agregado interminável de produtividade econômica material, que hoje predomina ainda e tem posto o planeta e a espécie frente a riscos e ameaças de magnitude catastrófica, bem como às crescentes desigualdades materiais e simbólicas que alimentam intermináveis conflitos e desgarramentos a nível local, nacional, regional e mundial. E constitui o núcleo central do enfoque do “Bom viver” que emerge na última década, como contribuição relevante a novos pilares civilizatórios da América Latina, como fruto da combinação do saber ancestral andino e uma renovada reflexão crítica, intelectual e acadêmica, que certamente está povoada por matizes e ainda polêmicas internas de múltipla índole.

 

Ainda que suas fórmulas de expressão mais conhecidas remetam ao “Sumak kawsay” do kichwa dos atuais Equador e Peru, e ao “Suma Qamaña” do aymará da atual Bolívia, encontra fórmulas similares no “Ñandereko” dos guaranis, o “Shiir waras” dos Ashuar, o “Küme mongen” dos Mapuche, e em praticamente todos os povos indígenas, não só na América Latina, senão em todas as culturas ancestrais do mundo, o que não exime o enfoque de polêmicas internas sobre seu real grau e formas de relação com os povos indígenas. Isso põe em evidência o caráter plural e aberto, e até mestiço, quando entronca com as novas reflexões emancipatórias, que de fato apresentam o conceito de Bom viver, no sentido que não consegue, nem parece ser sua vocação, se definir absoluta e detalhadamente, mas que sim mostra um nítido e sólido conjunto de valores, formas de pensar e sentir o ser humano, a natureza e o cosmos que, tendo como fonte histórica a ancestral cultura andina, aparece com renovada vigência intelectual e sentido político como insumo relevante para novos pilares civilizatórios.

 

Seu núcleo distinguível pode ser sintetizado essencialmente numa perspectiva holística e cósmica, de respeito e convivência horizontal com a natureza, de busca da justiça social e do pleno respeito pluricultural. De maneira especial, enfatiza uma radical concepção do bem-estar e do desenvolvimento que impõe a auto-limitação e a austeridade como opostos à produção ilimitada e o esbanjamento irresponsável e insustentável. A partir de profundos conteúdos comunitários, põe em muito limitada importância o consumo e a propriedade individuais, mas releva um lugar crucial da inclusão de todos e a harmonia dos sentimentos. Um olhar e um sentir do ser humano e do mundo que o integra de maneira orgânica com a totalidade do universo, separando-se do antropocentrismo hegemônico da modernidade ocidental capitalista. O que tem levado alguns intelectuais a caracterizá-lo como “biocêntrico”, “bioigualitarista” ou “bioambientalista”.

 

Apropriado por diversos setores sociais, e incorporado de múltiplas formas às novas propostas de governança, das novas legislações às novas formas de conceituar a economia e as relações com o meio ambiente, abre fortes debates sobre suas possíveis realizações históricas concretas, que podem derivar em formas alternativas de sociedade, que superem e substituam o hegemônico, ou fiquem limitadas dentro dele. É o desafio que apresenta ao Bom Viver a realização de seus princípios em projetos políticos, planos governamentais, políticas públicas, e novas formas não convencionais e viáveis de organização econômica a toda escala, com as dificuldades e riscos que isso implica. Assim ocorre com muita força em países como a República do Equador e o Estado Plurinacional da Bolívia.

 

Trata-se de um processo em fluxo e em diálogo, necessariamente múltiplo e plural, que converge ao mesmo tempo em um fluxo e diálogo mais amplo, a escala de comunidade de destino humana, junto a numerosas outras contribuições de outras tantas ricas culturas ancestrais, bem como de pensamentos emancipatórios emergentes no ocidente, que tomando criticamente o melhor dos elementos da modernidade, nutrem-se do mais avançado do conhecimento e da reflexão atuais e criam inéditas propostas éticas que, fazendo-se cargo das urgências do presente, contribuem também à conformação de novos pilares da civilização para a comunidade de destino humana.