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L'avocat de la nature (interview de Michel Rocard) O advogado da natureza (entrevista de Michel Rocard)

 

O ex-premier francês tanto reconhece que o Brasil “não é bom aluno em termos de meio ambiente” quanto que lhe cabe um papel determinante na salvação da Terra.

 

A Rio+20 é um momento oportuno para, mais uma vez, tentar resolver os problemas de meio ambiente do planeta. Nesse evento, marcado para 2012, participa também Michel Rocard, o premier mais popular da história moderna da França. Em visita ao Brasil na semana passada, o embaixador da França para assuntos polares e aquecimento climático, esteve com cinco ministros em Brasília. Seu objetivo? “Perguntamos ao governo brasileiro se podemos, no discurso da Conferência Rio+20, propor uma Carta das responsabilidades universais na agenda brasileira e internacional”, respondeu Rocard numa entrevista exclusiva a CartaCapital. “Se o Brasil não aceitar esse risco, seu naufrágio na Rio+20 é uma certeza”, acrescentou o ex-premier. Carismático, numerosas vezes Rocard disse, durante a entrevista: “não gosto desta pergunta”. Mas ele as respondeu sem pestanejar. Rocard, ademais, falou de outros temas: do ex-presidente Lula, da social-democracia, e de sua mítica relação com François Mitterrand.

 

CartaCapital: O Brasil não é exemplo em termos de meio ambiente para o mundo. O senhor está aqui porque este país é estratégico?

 

Michel Rocard: De fato, o Brasil é estratégico no cenário internacional. Ele tem de ajustar contas com grandes potências sobre o clima e a bolha financeira. O Brasil não depende de ninguém. É um país potente, tem autoridade mundial. Tem orgulho de sua cultura e é combativo. Mas o Brasil, sejamos claros, não é bom aluno em termos de meio ambiente.

 

CC: Como assim?

 

MR: Veja, sou um velho habitué de relações internacionais. Não costumo criticar as nações amigas. Portanto, não gosto da sua pergunta. Mas vamos lá. A deflorestação continua no Brasil.

 

CC: Sim, mas o senhor participará de Rio+20 também para criticar a Declaração dos Direitos do Homem, que tem mais de 60 anos.

 

MR: Eu não abordo o tema dessa forma. Existe, vale exprimir, uma ética política sobre a interdependência das nações. Estou envolvido no trabalho dos grupos da sociedade civil e de ONGs, um trabalho de mais de 15 anos. Estou nessa jogada faz tempo. Escrevo textos. Sou cúmplice. Não vim ao Brasil para falar de sonhos. Temos objetivos concretos. Por conta disso, no evento Brasil+20 perguntamos ao governo brasileiro se podemos, no discurso da Conferência Rio+20, propor uma carta de responsabilidades universais na agenda brasileira e internacional.

 

CC: E por que o Brasil?

 

MR: Trata-se de um país grande. Não é um país nuclear. E isso é importante, porque num movimento mundial um país nuclear não tem credibilidade. O Brasil, além do mais, é jovem, vítima da colonização. E, apesar de tudo, o Brasil tem boa comunicação com os países do chamado Primeiro Mundo. Nos códigos jurídicos e de cortesia, o Brasil é muito melhor que a China. Mas, no fim das contas, o balanço anterior à Rio+20 é ruim: fizemos muito pouco em termos de meio ambiente, e não somente no Brasil, mas mundialmente.

 

CC: O Brasil vai mal nesse contexto?

 

MR: Respeitamos muito o governo brasileiro. Líderes governamentais tomam decisões. Mas até este momento, todas essas conferências sobre o tema não deram em nada. Documentos são assinados e depois há encontros nos quais documentos são aprovados. E nós dizemos, que pena! Precisamos mudar isso. Respeitamos, e muito, repito, o governo brasileiro. Mas ele precisa agir: encontra-se diante de uma ocasião. Ele pode criar inimigos, mas tem de tomar partido nessa situação. Caso o Brasil não faça isso, seu naufrágio na Rio+20 é uma certeza.

 

CC: Como o senhor vê os dois mandatos de Lula?

 

MR: Não gosto da sua pergunta. Não estou aqui para avaliar o balanço de governos. Ademais, não há nada de mal a falar sobre os mandatos de Lula. Seu balanço na luta contra a pobreza é positivo. Idem em relação à construção da dignidade do Brasil numa escala internacional. O mundo está escutando o Brasil.

 

CC: O rocardismo, quando foi criado, era favorável a uma economia de mercado e contra as privatizações a 100%. O rocardismo é o movimento social-democrata na França?

 

MR: Claro, e cada vez mais. Sou cria de Jean Jaurès e de Pierre Mendès-France. Meus cúmplices se chamam Jacques Delors e mais um punhado de pessoas. Qual é o problema? A França é um país dividido. Por exemplo, na Espanha, a diferença entre o lado catalão e o castilho não impede a existência de uma grande Espanha. Todos os países europeus, salvo nós, franceses, foram concebidos por motivos guerreiros ou comerciais, ou por uma combinação de ambos. Inclua nessa equação Dinamarca, Suécia, Reino Unido, Portugal etc. E mesmo a Alemanha e a Itália, mesmo que sejam Estados concebidos já no século XIX, entram no mesmo contexto. Nós, na França, somos o Estado mais centralizado de toda a Europa. As razões são militares e temos um centralismo excessivo. No século XX, tivemos mais policiais por 10 mil habitantes do que qualquer outra nação europeia, mesmo a Espanha de Franco. Na França, não houve um diálogo social como em outros países europeus. Isso, em parte, deve-se ao fato de o Partido Socialista Francês ter nascido em 1905, 50 anos após seus homólogos na Europa.

 

CC: O que significa um Partido Socialista lento em relação ao Partido Comunista Italiano, que logo rompeu com o comunismo soviético?

 

MR: Significa um PS francês jacobino, centralista, marxista na linha de Kautsky. E veja: Marx foi traído, e esse é um debate para uma nova entrevista. Mas mesmo Jaurès, na França, que se referia às regiões, era minoritário. E assim a evolução do socialismo europeu em direção à social-democracia não aconteceu na França.

 

CC: Porém, no resto da Europa a social-democracia se impôs…

 

MR: Sem dúvida. Na Alemanha, na Itália, nos Países Baixos, na Grã-Bretanha e em toda a Escandinávia. Mesmo após Franco, a reconstrução de uma legenda socialista na Espanha foi furiosamente social-democrata. Há uma bela frase de meu amigo Felipe González: “Nós não faremos como os franceses”. É a frase mais rocardiana de todos os tempos.

 

CC: Como se define uma pessoa de esquerda hoje?

 

MR: Uma pessoa de esquerda, hoje, é facilmente definida. Trata-se, como sempre foi ao longo dos tempos, de uma pessoa a combater os poderes arbitrários. A pessoa de esquerda dá, hoje, prioridade ao diálogo social. Há exceções dos dois lados, devo dizer. Mas, no mundo inteiro, incluindo o Brasil, a direita se caracteriza pela repressão em termos internacionais, internos, sociais. E a esquerda se caracteriza pelo diálogo, pela negociação.

 

CC: Em 1988, o senhor conseguiu resolver uma guerra civil na Nova Caledônia, território francês.

 

MR: Aconteceu no fim de junho. Sabe por que deu certo? Porque não fizemos o texto. Durante muito tempo nos esforçamos para que manifestantes de todas as tendências se reunissem. E isso não foi fácil. De um lado, os brancos achavam que queríamos abandoná-los. Por outro lado, os mestiços criam que o Estado francês havia mentido. Criamos um referendo. Já que os habitantes da Nova Caledônia não acreditavam no governo francês, organizamos um referendo – e isso significou o término da guerra civil.

 

CC: Esse foi o seu maior trunfo, a paz na Nova Caledônia?

 

MR: Bem, é a minha vitória mais visível. Quando me tornei premier de François Mitterrand, todo mundo dizia que eu não duraria. Todos sabiam que Mitterrand me detestava. Mais, ele era um homem com táticas muito mais afinadas que as minhas. Eu era um mero visionário estratégico, mas de tática eu não sabia nada. Mas o caso da Nova Caledônia fez as pessoas repensarem a coisa. E foi por isso que ganhei uma certa popularidade.

 

CC: Em 1949, o senhor aderiu às esquerdas socialistas. Como foi virar um homem de esquerda?

 

MR: Sou protestante. O Evangelho está repleto dos horrores cometidos pelos ricos. Meu pai era resistente. Durante a Segunda Guerra Mundial, eu era pequeno, mas resistente aos 14 anos. A esquerda francesa era muito mais resistente que a direita. Claro, houve admiráveis resistentes de direita, mas foi uma minoria. Aí você coloca tudo isso numa panela. Coloque nessa panela as aventuras coloniais imbecis: as guerras da Indochina e da Argélia. A França estava tentando reconstruir seu velho império. Essa é a minha adolescência. É um horror.

 

CC: Agora o senhor é embaixador da França dos polos e do aquecimento climático de Nicolas Sarkozy. Ser conselheiro de Sarkozy não pega mal?

 

MR: Não sou conselheiro de Sarkozy.

 

CC: No programa que recebi o senhor é apresentado como seu conselheiro.

 

MR: Meu Partido Socialista adota medidas que não aprovo. Ele refuta todo contato de participação na oposição, e oposição sistemática. Mas, a meu ver, a oposição sistemática implica uma oposição a tudo que o governo propõe porque se trata de uma proposta do governo – e mesmo quando essa proposta é positiva. Acho isso estúpido e desastroso do ponto de vista eleitoral. Sabe por quê? Os eleitores gostam de boas propostas, feitas pela direita ou esquerda. E foi nessa linha que aceitei trabalhar sobre assuntos de meio ambiente. Além disso, Sarkozy precisava da legitimidade de um líder da esquerda, e por isso me dispus a salvar projetos de pesquisa.

 

CC: Então o senhor esteve com ele?

 

MR: Claro, estive com Sarkozy. Dei-lhe conselhos. E lhe disse que sou completamente social-democrata.

 

CC: Mas isso ele já sabia.

 

MR: Sim, óbvio, ele até riu sobre esse tema.

 

CC: Mas o senhor foi crítico, já embaixador da França, em relação aos envios de imigrantes para fora do país, contra Sarkozy. O senhor chegou a mencionar o regime de Vichy, colaboracionista nos tempos da ocupação nazista.

 

MR: Atenção: aquilo que comparo ao regime de Vichy é relacionado a uma única medida, e não à política geral de Sarkozy. E lhe peço, como jornalista, de não simplificar as coisas.

 

CC: Tudo bem. Mas o senhor é crítico em relação a Sarkozy, não?

 

MR: No setor no qual sou ativo, o meio ambiente, não sou crítico. Mas de resto digo o que quero.

 

CC: Ex-membro do Parlamento Europeu por 15 anos, o senhor vê o fim da União Europeia com a crise do euro?

 

MR: No fundo, não há crise do euro. Existe uma crise da Europa. Fizemos uma moeda comum. Isso se deve à inteligência de Jacques Delors, à tenacidade de François Mitterrand e à formidável coragem de Helmut Kohl. E o euro está aí. Merci, Helmut Kohl. Agora vemos as besteiras dos gregos, incapazes de gerir sua economia. Mais, mentiram sobre seus números. Angela Merkel diz que não pode ajudá-los. Mas ela não percebe que uma verdadeira comunidade se define em princípio pela solidariedade. A Grécia, afinal, representa 3% do PIB da UE. Não é nada. Mas, se o euro naufragar, será um tsunami mundial que afetará o Brasil.

 

CC: Em La Haine Tranquille (Seuil, 2002), o autor Robert Schneider diz que o problema entre o senhor e Mitterrand, agora uma questão mítica, deveu-se às suas convicções centro-esquerdistas.

 

MR: Veja. Há uma cultura jornalística particular sobre esse tema. Os jornalistas, em geral, não sabem avaliar as correntes coletivas, não observam os movimentos sociais. Vocês, jornalistas, ficam a observar um balé de indivíduos. Esses movimentos não aparecem em La Haine Tranquille, que o senhor menciona.

 

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