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20 Abril 2012
A Cúpula dos Povos e as lutas do Fórum Global de 1992
Junho de 1992, junho de 2012. Na reta final de preparação para a Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, os que já têm uma certa idade começam a se emocionar com as lembranças do Fórum Global de 92. Voltaremos ao Aterro do Flamengo, palco que há vinte anos encenou um dos mais importantes momentos de constituição das lutas globais que atravessaram os anos 1990, articulando as lutas socioambientais e as mobilizações contra o neoliberalismo que dominou a década e que encontrou o fim do ‘fim da História’ na inauguração do novo milênio, nas manifestações de Seattle em 1999 e no Fórum Social Mundial de 2001. O Fórum Global de 92 plantou sementes férteis, nos abasteceu de esperanças e coragem para lutar. Quebramos a hegemonia do neoliberalismo, derrotamos a Alca, paralisamos a OMC e conquistamos um novo ciclo político na América Latina, com tudo de bom e de esgotamento que nossas análises possam apontar.
Voltar ao Aterro vinte anos depois nos reaviva a memória de um percurso rico de mobilizações, desafios, conquistas e de um necessário balanço. Onde estamos agora? Em que ponto da trajetória de lutas nos encontramos? Como a Cúpula dos Povos se insere nesta trajetória? Quais as diferenças e semelhanças em relação ao contexto de vinte anos atrás? Em 1992, recém saídos da queda do muro de Berlim, o Fórum Global gerou, a partir do trabalho em 45 tendas, um conjunto de tratados das ONGs e movimentos sociais que organizaram uma rica plataforma de lutas que expressava um ambiente de unidade na resistência ao neoliberalismo. Um exemplo foi o Planeta Fêmea, que somou suas ações por direitos sexuais e reprodutivos, dirigidas à afirmação do direito ao próprio corpo e vivência da sexualidade, a uma luta contra as políticas de controle da natalidade e o ambientalismo neomalthusiano que reinava na época, e que atribuía ao nascimento de pessoas em situação de pobreza os males ambientais do planeta, articulando-se assim às lutas socioambientais que questionavam o modelo de desenvolvimento em curso. Algo similar ocorreu com muitos outros movimentos, que no Fórum Global foram convocados a somarem suas agendas específicas a uma convergência e uma síntese mais amplas.
Agora, a Cúpula dos Povos se realizará sob o signo da mais profunda crise capitalista desde 1929, estando o sistema internacional desde 2008 ameaçado por uma iminente quebra no funcionamento das bases de sua sustentação e refém de um sistema financeiro que passou a dominar não apenas o mundo da produção mas também a política. Enquanto em 1992 a hegemonia dos EUA encontrava-se no auge, hoje o sistema internacional encontra-se em uma profunda crise de hegemonia e em disputa por uma nova correlação de forças. As instituições multilaterais que sustentaram a hegemonia norte-americana encontram-se também em crise e nunca a necessidade de se dar um fim ao sistema de Bretton Woods esteve tão clara.
Esta múltipla crise – econômica, financeira, ambiental, energética, alimentar, política –, no entanto, ainda não se traduziu em uma nova convergência de lutas entre os movimentos globais. Pelo contrário, as intensas e frequentes lutas de resistência têm ocorrido de forma dispersa e fragmentada – como é o caso das mobilizações na Grécia, dos indignados na Espanha, da Primavera Árabe, dos Occupy nos EUA, do movimento estudantil no Chile, das lutas contra as violações dos direitos territoriais no Brasil e em outros países – sem que tenha se constituído um ambiente político, cultural, simbólico, de ligação entre essas ricas expressões de lutas antissistêmicas. Este é o desafio colocado para a Cúpula dos Povos. Convocar as lutas locais e globais dispersas pelo mundo a se encontrar e estabelecer convergências. A conferência oficial nos oferece todos os motivos para que nos unamos na resistência: a agenda oficial se resume a encontrar na financeirização da natureza e na perda de direitos a saída para a crise e para a inauguração de um novo de ciclo de acumulação de capital.
O Fórum Global de 1992 que nos antecedeu tem muito a nos ensinar. Um dos tratados aprovados há vinte anos no Aterro do Flamengo, a Declaração do Rio de Janeiro, afirmou que “A ‘Cúpula da Terra’ frustrou as expectativas que ela mesma havia criado para a humanidade. Manteve-se largamente submissa aos poderosos interesses econômicos dominantes e às lógicas de poder que ainda prevalecem. (…) Denunciamos o fato de as grandes corporações transnacionais se constituírem como um poder acima das nações, em conluio com muitos governos e instâncias públicas internacionais, apresentando-se como campeões do desenvolvimento sustentável.” Nada mais atual do que essa declaração escrita em 1992.
São muitas as semelhanças entre 1992 e 2012. Há vinte anos, a conferência oficial, inspirada no Relatório Brundtland ‘Nosso Futuro Comum’, publicado em 1987, ofereceu ao mundo a noção de desenvolvimento sustentável como um de seus principais resultados. Já naquela época, vozes do Fórum Global denunciavam que o termo seria algo em disputa e em risco de apropriação por corporações e países que o utilizariam para legitimar um novo ciclo de acumulação mantendo-se os mesmos padrões de exclusão social e apropriação privada da natureza: “Recusamos energicamente que o conceito de desenvolvimento sustentável seja transformado em mera categoria econômica, restrita às novas tecnologias e subordinada a cada novo produto no mercado” De fato, o termo desenvolvimento sustentável foi tão amplamente utilizado para encobrir violações de direitos e injustiças ambientais que hoje não quer dizer mais nada.
Eis que a conferência de 2012, vinte anos depois, anuncia que a economia verde será a nova ideologia dominante, a panaceia que todos deverão considerar como a solução acima de qualquer questionamento. Quem afinal poderia ser, assim como se dizia em 1992 no caso do desenvolvimento sustentável, contra uma economia que usa a ecoeficiência e as novas tecnologias? De novo nós, a Cúpula dos Povos, assim como o fizeram tratados e movimentos no Fórum Global de 1992, afirmaremos que a economia verde é mais uma tentativa das corporações legitimarem a supressão de direitos e a apropriação privada da natureza para manterem suas taxas de lucro.
Em 1992, o Tratado dos Modelos Econômicos Alternativos afirmava que “o Estado neoliberal usa seu poder e violência para reforçar e expandir esse sistema econômico opressivo sob a coordenação das autoritárias instituições de Bretton Woods, particularmente o Banco Mundial, o FMI e o GATT, em benefício do crescente monopólio das corporações transnacionais e seu controle sobre os recursos mundiais. O modelo Brundtland de desenvolvimento sustentável vai perpetuar esta situação. A expansão presente da ideologia do livre comércio mina o poder dos estados de formular políticas para a proteção dos recursos naturais e da vida humana. A ideologia neoliberal transforma as relações sociais e as comunidades ecoculturais e de base em meras variáveis econômicas.”
O chamado da Cúpula dos Povos na Rio+20 afirma algo similar, apenas com tom de urgência mais nítido: “O sistema de produção e consumo capitalista, representado pelas grandes corporações, mercados financeiros e os governos que asseguram a sua manutenção, produz e aprofunda o aquecimento global e as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a escassez de água potável, o aumento da desertificação dos solos e da acidificação dos mares, em suma, a mercantilização de todas as dimensões da vida. Enquanto estamos vivenciando uma crise civilizatória inédita, governos, instituições internacionais, corporações e amplos setores das sociedades nacionais, presos ao imediato e cegos ao futuro, agarram-se a um modelo de economia, governança e valores ultrapassado e paralisante. A economia capitalista, guiada pelo mercado financeiro global, continua apoiada na busca sem limites do lucro, na superexploração do trabalho – em especial o trabalho das mulheres e dos setores mais vulneráveis –, na queima dos combustíveis fósseis, na predação dos ecossistemas, no desenvolvimento igualado ao crescimento, na produção pela produção – baseada na descartabilidade e no desperdício e sem consideração pela qualidade da existência vivida.”
São fartas também as semelhanças entre 1992 e 2012 no que diz respeito a não-implementação de acordos. A conferência oficial de 1992 aprovou um conjunto de documentos, os mais importantes sendo a Carta da Terra, a Declaração do Rio, a Convenção da Biodiversidade, a Convenção sobre Desertificação, a Convenção Marco sobre Mudanças Climáticas, a Agenda 21 e os Princípios sobre Florestas. Mais importante ainda foi o fato de que 1992 inaugurou um ciclo de conferências das Nações Unidas que se estendeu ao longo dos anos 1990 e que criou um amplo conjunto de normas sobre direitos.
A Rio+20 deverá aprovar documentos relacionados à criação de Metas de Desenvolvimento Sustentável, espelhadas nas Metas de Desenvolvimento do Milênio, onde se teme que sejam jogados fora os princípios que nortearam o ciclo dos anos 1990, como é o caso das responsabilidades comuns porém diferenciadas e dos direitos então aprovados. Aprovará também a chamada economia verde e uma nova governança restrita ao campo ambiental, sem tocar nas demais dimensões detonadoras da crise global. Frente a um mundo em profunda crise de múltiplas dimensões, a Rio+20 se limitará a anunciar que o mundo será salvo por metas de desenvolvimento sustentável que não serão cumpridas – assim como as declarações, tratados e convenções aprovados em 1992 e ao longo dos anos 1990 – pela economia verde e por uma governança ambiental que conviverá com as instituições multilaterais cujas regras levaram o mundo à iminência de um colapso.
Existem, porém, dinâmicas que diferenciam a lógica do Fórum Global de 1992 da Cúpula dos Povos de 2012. Seguramente, há muitos elementos distintos nas trajetórias dos movimentos após vinte anos de experiências e lutas, e uma das diferenças nesse percurso é o fato de que, como afirma Jean Marc von der Weid, em 1992 não tínhamos as evidências que temos hoje que comprovam a validade e viabilidade de nossas propostas. Como afirma Lívia Duarte, em artigo da Fase: “Na opinião de Jean Marc, da ASPTA, a diferença entre hoje e há 20 anos está, entre outros pontos, na solidez das práticas que respeitam as pessoas e o ambiente, como a produção de alimentos saudáveis na agroecologia. São muitas as experiências espalhadas pelo mundo. É preciso tornar visíveis essas práticas que também se materializam nos territórios. No entanto, a questão não se restringe a visibilidade: ao argumentar que a agroecologia só é possível com reforma agrária e campesinato, Jean Marc nos lembra que o debate sobre as alternativas está no plano político.”
Talvez uma das diferenças entre 1992 e 2012 seja o fato de que hoje nossos acúmulos de resistências e de experiências contra-hegemônicas nos coloquem como desafio elevar as nossas propostas ao patamar da disputa política, e não mais apenas das demonstrações alternativas. Por isso a Cúpula dos Povos pode e deve se tornar o momento, dentro de uma longa trajetória de acumulação de forças, onde façamos a disputa política, dizendo ‘não’ ao receituário nefasto expresso na conferência oficial e ‘sim’ a um projeto de sociedade baseado nos direitos dos povos, nas experiências e propostas que temos acumulado em nossas práticas e territórios de resistência.
Por isso, além de realizarmos atividades e debates, teremos momentos de convergências em plenárias e assembleias visando a expressão de visões comuns, a mobilização e a demonstração de força. E demonstraremos nossas soluções no Território do Futuro, afirmando que nosso mundo não é uma mercadoria, e que a partir de 2012 a humanidade precisa ser regida sob o signo dos bens comuns, dos direitos, da justiça social e ambiental.
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